sábado, 15 de janeiro de 2011

O que seria na verdade o LÚDICO?

 os desafios criativos do lúdico essenciais para a dramaturgia.
Por: Milton Andrade - Ator, diretor e dramaturgo. 
Nos dicionários da nossa língua, geralmente diversos significados são atribuídos ao lúdico, que é considerado como um adjetivo “que tem o caráter de jogos, brinquedos e divertimentos” e integra “a atividade lúdica das crianças”. Para a autora essa primeira explicação, além de restringir o lúdico à infância, refere-se apenas aos jogos, aos brinquedos e aos divertimentos das crianças, quando existe uma diversidade de manifestações culturais construídas pela humanidade e vivenciadas em todos os ciclos da vida, da mais tenra idade à velhice (Ferreira , 1986: p.1051).
Fazendo uma interessante discussão sobre o tema, Bracht (2003) salientou que o lúdico é um termo amplamente utilizado nos estudos sobre o lazer no Brasil. Contudo, o autor constatou que nem sempre os estudiosos se preocupam em precisar o significado dessa palavra, deixando lacunas que dificultam a compreensão do lúdico. Com essa afirmação, você pode perceber que as dificuldades que incidem sobre o entendimento do termo “lúdico” no vocabulário comum também podem ser verificadas na produção acadêmica. Vamos, então, fazer um exame mais minucioso de alguns estudos que tratam dessa questão.
Normalmente, os estudiosos que aprofundam conhecimentos sobre o lúdico não deixam de citar o clássico Homo ludens, texto escrito em 1938, por Johan Huizinga. Este autor destaca que, em geral, na língua latina o vocábulo ludus era um termo equivalente a jogo, cobrindo todo esse terreno de manifestações culturais. Dessa forma, o latim “ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar.” (Huizinga, 1993, p.41).
Bracht (2003) averiguou que é quase uma unanimidade conferir ao lúdico ou a termos equivalentes (tais como: práticas lúdicas, universo lúdico, vivência lúdica) características eminentemente positivas. Assim, o lúdico é sempre ressaltado como algo interessante, agradável, prazeroso, criativo, autônomo, voluntário e livre, como um fenômeno que provoca, nos sujeitos, um estado de agradável sensação. Nessa perspectiva, a essência da ludicidade poderia ser traduzida como prazer, júbilo, regozijo e alegria. O autor indaga: porque o termo lúdico recebe esta conotação positiva?
Mesmo que esta interpretação seja muito difundida em nosso meio, sobre ela recaem algumas objeções. Como lembra Bracht (2003), ao invés de simplesmente preservar o lúdico no sentido de uma “pureza original” e idealizada, o desafio consiste em potencializá-lo numa determinada direção. Como exemplo, o autor cita a ação da indústria cultural, quando esta apela para o interesse “natural” da criança pelo jogo, onde ocorre um processo de ressignificação que precisa ser compreendido. Através da oferta de determinados objetos, fantasias, da delimitação dos espaços e dos tempos, os meios de comunicação de massa estruturam o universo das brincadeiras e jogos infantis de maneira que a criança não é protagonista, mas mero objeto de um outro jogo.
Mesmo não tendo uma visão idealizada sobre o lúdico, muitos autores brasileiros conferem a ele uma conotação positiva. Outros pesquisadores ressaltam, ainda, seu caráter subversivo e utópico do lúdico. Vejamos o que pensam alguns deles.
Marcellino (1990) entende o lúdico como um componente da cultura historicamente situada e que pode significar uma “experiência revolucionária”. Assim entendido, o lúdico permite não só consumir cultura, mas também criá-la e recriá-la, vivenciando valores e papéis externos a ela (Marcellino, 1990). Esse potencial revolucionário do lúdico é citado por vários autores adeptos do pensamento de que o lúdico não deve funcionar como válvula de escape, propiciar a evasão, comprometer-se com a fuga da realidade e com a quebra da rotina.
Pinto (1995, p.20) considera-o como vivência privilegiada do lazer que materializa experiência cultural, movida pelos desejos de quem joga e coroada pelo prazer. Para a autora, concretizar o lúdico é “renovar relações interpessoais, experiências corporais, ambientes, temporalidades e energias; é reencontrar consigo mesmo, com o que gosta e deseja; compreender como nossos sonhos se constituem no contexto em que vivemos; transbordar a crítica e a criatividade; e saborear o momento presente como possibilidade de vivências de utopias.”
Na pesquisa realizada com meninos e meninas que trabalham nos canaviais de Pernambuco, Silva (2001, p.18) destacou o caráter de subversão e de transgressão da ordem desenvolvidos por meio de ações lúdicas. Essa transgressão “deve ser compreendida como um caminho cultural e possibilidade real de construção de níveis mais avançados de fazer política, história e cultura.” O autor reconhece que o lúdico não é apenas um reino da fantasia, dotado apenas da força transgressora. Além de conter todos os valores citados, contêm também uma relação dialética entre consenso e conflito, dor e prazer, alienação e emancipação.
Alves (2003, p.70), por sua vez, compreende o lúdico como uma dimensão humana que se expressa na cultura, por isso mesmo cada sociedade convive com diferentes referências, possíveis de serem identificadas quando se analisa a presença deste elemento em seu interior. Homens, mulheres e crianças interferem no meio e sofrem influências deste, o que permite a construção de uma “teia de relações”, também lúdicas, onde sujeito e cultura são modificados. Compreender esta dimensão nas sociedades é, para a autora, uma tarefa instigante.
Debortoli (2002) considera a ludicidade como uma das dimensões da linguagem humana, possibilidade de expressão do sujeito criador, que se torna capaz de dar significado à sua existência, ressignificar e transformar o mundo. Sua percepção da linguagem vai além da fala, pois se trata de expressão, da capacidade de tornar-se narrador.
Sendo compreendido como uma forma de linguagem humana referenciada na brincadeira, o lúdico pode se manifestar de diversas formas (verbal, impressa, gestual, visual, artística, etc.) e ocorrer em todos os momentos da vida – no trabalho, no lazer, na escola, na família, na política, na ciência, dentre outros (Gomes, 2004).
Contrapondo o senso comum, como visto no início deste tópico, para o qual o lúdico é equivocadamente associado à infância e tratado como sinônimo de determinadas manifestações da nossa cultura, Gomes (2004, p.145) afirma que “as práticas culturais não são lúdicas em si. É a interação do sujeito com a experiência vivida que possibilita o desabrochar da ludicidade”. Além disso, o lúdico constitui formas diferenciadas de partilhar a vida social, não apenas positivamente como alertado por Bracht, mas profundamente marcado pela exaltação dos sentidos e das emoções – misturando alegria e angústia, relaxamento e tensão, prazer e conflito, regozijo e frustração, satisfação e expectativa, liberdade e concessão, entrega, renúncia e deleite.
Por isso, o lúdico pressupõe a valorização estética e a apropriação expressiva do processo vivido, e não apenas do produto obtido, mesmo quando não se obtém o resultado almejado (por exemplo, torcer ou integrar um time que não sai vitorioso de uma partida), prevalece o pensamento de que a vivência valeu a pena, sendo mantido o desejo de repeti-la e conquistar novos desafios (Werneck, 2003; Gomes, 2004).
Pelo exposto, o lúdico pode ser entendido como “expressão humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com o contexto”, refletindo as tradições, os valores, os costumes e as contradições presentes em nossa sociedade. Assim, é construído culturalmente e cerceado por vários fatores, tais como normas políticas e sociais, princípios morais, regras educacionais, condições concretas de existência. O lúdico, compreendido como uma forma de expressão humana que tem o brincar como referência, representa uma oportunidade de (re)organizar a vivência e (re)elaborar valores comprometidos com um determinado projeto de sociedade (Gomes, 2004, p.145).
Para tratar do assunto com os alunos(as) é preciso considerar as discussões acima ao desenvolver todos os conteúdos desta proposta para a Educação Física. Articulando a discussão teórica elaborada pela professora Christianne Gomes, Leila M. S. M. Pinto (s/d) ajuda-nos a concretizá-la na reflexão abaixo:
Descanso, divertimento, desenvolvimento pessoal, social, cultural, profissional... Embora as vivências lúdicas, por si sós, não dêem conta de dar respostas para todos os nossos problemas, nos ajudam a ser "mais" na vida. E beneficiamo-nos de vários modos com essa experiência.
Ao falarmos em vivências lúdicas estamos nos referindo ao que nossa cultura chama de festa, brincadeira, brinquedo, jogo, alegria construídas pelo exercício da liberdade. O lúdico fala de vivências que consideram que a sua qualidade está nas pessoas.
O ponto de partida da vivência lúdica são os sonhos, os desejos dos sujeitos que mobilizam o planejar, o organizar, o agir, o saborear, vivendo intensamente as relações estabelecidas nas atividades desenvolvidas no tempo, no lugar e com os materiais disponíveis.
O jogo lúdico estimula o recriar: ter boas idéias e desenvolvê-Ias com espontaneidade e a alegria de dividi-Ias com os parceiros. O jogador lúdico quer realizar o que tem prazer e por isso lida com os limites e as possibilidades do que faz. Curioso, ele busca sempre novas descobertas: de seus próprios talentos, dos talentos de seus amigos e do sucesso do trabalho em grupo. Aprender e reaprender a gostar com capacidade empreendedora e solidariedade são desafios permanentes para ele, procurando sempre descobrir o que move as pessoas para a participação com autonomia.
A vivência lúdica nos ensina a reorganizar a vida e o trabalho, descobrindo neles o prazer, a emoção e as possibilidades de nos enriquecermos com diversificadas experiências culturais.

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