sábado, 15 de janeiro de 2011

Dramaturgia de verdade

Encarado no Brasil como subliteratura, o romance policial só se firmou por aqui lá pelos anos 80 com o aval de Rubem Fonseca, autor conhecido por tematizar a violência urbana em seus livros.


Por Adriana Lunardi*

Encarado no Brasil como subliteratura, o romance policial só se firmou por aqui lá pelos anos 80 com o aval de Rubem Fonseca, autor conhecido por tematizar a violência urbana em seus livros. A demora na consolidação do gênero entre nós encontra certa explicação no preconceito dos letrados, que etiquetavam as obras literárias, dizendo quais pertenciam à alta, quais à baixa literatura. Essa discussão, já vencida pela academia, torna-se irrelevante, senão anacrônica, quando se pensa em termos de televisão. Sem nomear as inconciliáveis diferenças, é oportuno lembrar aqui que a televisão possui algo em comum com a literatura brasileira: o culto ao Realismo. Encenar a vida como ela é, eis a expectativa de ambas, e mais ainda da dramaturgia televisiva. Do hiper-realismo das reportagens aos shows do tipo mundo cão, o interesse pelo fato se sobressai, ganha audiência, e se embute também na produção ficcional, dominante na tevê.

Se a “verdade” cai bem no gosto do brasileiro, não é de estranhar que o gênero policial tenha finalmente encontrado o seu público. A insegurança das ruas e a banalidade do crime poderiam explicar por si só essa demanda. O mundo real está violento e bruto. E os motivos para ter chegado a esse ponto estão mal contados pelo poder público, que além de usar mal as explicações, tem se mostrado incapaz de garantir o funcionamento pleno de suas instituições.

Quando há um assassinato, cabe ao Estado esclarecê-lo. Procurar o autor, entender os motivos, julgar e punir. Esse é o andamento básico para que a ordem se restabeleça. Uma das premissas do gênero policial, na ficção, é contar justamente de que forma se desenrola a investigação de um crime. Desde Edgar Alan Poe, é a figura do investigador que irá exumar os enigmas aparentemente insolúveis de um crime. É ele quem tratará de descrever como tudo ocorreu, tirar da cena do roubo ou do assassinato elementos que indiciam o acusado, e elucidar pontos obscuros, se houver. O detetive já teve a mente labiríntica de um Sherlock ou a imaginação de um Dupin, capazes de dar respostas lógicas ao que parecia sobrenatural. O detetive dos nossos tempos é menos pretensioso, geralmente um policial sem poder intelectual superior, que encontra dentro da própria estrutura em que trabalha os maiores opositores ao sucesso de suas investigações.

No recente A lei e o crime, seriado policial de Marcílio Moraes, que teve uma primeira temporada na TV Record, cabe a Catarina, uma delegada jovem, recém-nomeada, a elucidação dos crimes. Ainda verde no ambiente ambíguo da delegacia e, ao que seu passado indica, recém-chegada também ao mundo real, a presença de Catarina já mexe na estrutura das histórias policiais, tipicamente loteadas pelos homens. Em cada episódio, ela aparece em uma cadeira de rodas, narrando o que aconteceu a ela durante o tempo em que comandou a delegacia. Algo deu muito errado, percebemos na hora. Queremos entender o quê, como e por quê. Contar a partir do fim, escrevendo para trás, depois de tudo acabado, é plantar o primeiro suspense, ingrediente maior do gênero policial.

Não será preciso muito esforço da imaginação para que nos identifiquemos com as situações ilustradas nos episódios de A lei e o crime. As cenas que mostram a polícia e os bandidos em ação repetem em nós a angústia dos civis que procuram esconder-se de um fogo cruzado entrando nos becos e casas de labirínticas vielas. Não há para onde fugir, parece ser a verdade, e tal hegemonia dá ao seriado um tom de violência sem controle que nossa experiência confirma no cotidiano.

Nos seriados policiais, a investigação detetivesca é o elemento de raciocínio, o pequeno farol de esperança no pesadelo criado. Catarina, a delegada, com sua vontade de fazer cumprir a lei, lança mão de pedidos de prisão, acelera os processos administrativos, usa ferramentas óbvias para obter resultados em sua função. Como ela, entramos no seriado querendo uma explicação racional para a epidemia de violência e a paralisia em detê-la. Aos poucos, vamos reconhecendo uma cultura cuja racionalidade se perde em contas bancárias, interesses políticos e pessoais, perversões. A delegada conhece o seu papel no sistema, seus colegas e subordinados também. Todos sabem o que deve ser feito. Mas é exatamente aqui que o pesadelo se fortalece. Como no mundo totalitário de Orwell, a lei é o crime. 

A verdade da ficção

Por mais que edifique sua linguagem a partir dos postulados do Realismo, A lei e o crime não copia a verdade: constrói uma verdade. A verdade do Morro do Alvorada, onde Nandinho da Bazuca é traficante, e da 53ª delegacia de polícia, liderada por Catarina e sabotada por seus colegas. A ficção, nesse caso, finge tanto, e tão bem, que faz jus à atenção que o seriado mereceu do público. Para conseguir tal veracidade em ficção, é necessária uma narrativa sólida, que interligue as cenas sem tropeços, além de boas sequências de ação e um diálogo de registro oral, em que tudo que é dito possui um sentido ambíguo, negociável, usado para caracterizar o comportamento das personagens. Além da boa dramaturgia, esse tipo de seriado exige do autor uma compreensão quanto à natureza do entretenimento que propõe. Marcílio Moraes, o criador da série, é conhecedor tanto de um quanto de outro. Respeita os códigos do romance policial, transpondo-o para a telinha com a emoção condensada que o meio oferece, e sem as discussões já superadas quanto ao lugar do gênero a que se filia. Policial com arte, é isso que a gente vê na televisão. 

Adriana Lunardi é escritora e roteirista de tevê. Estreou na literatura com As meninas da Torre Helsinque (Mercado Aberto/PMPA, 1996). Em 2002, lançouVésperas (Rocco), também publicado na França, Argentina, Portugal e Croácia.Corpo estranho, seu primeiro romance (Rocco, 2006), está sendo traduzido para o francês.Tem formação acadêmica em Comunicação Social e estuda Literatura Brasileira na UERJ. Vive no Rio de Janeiro. 

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