quarta-feira, 27 de abril de 2011

Sartre e o teatro brasileiro antes de 1964


O teatro deveria estar sempre consciente das necessidades de sua época. Tomemos Hamlet, essa peça repisada, como exemplo de interpretação. Nas sombrias e sangrentas circunstâncias em que escrevo estas linhas, ante o espetáculo dos crimes perpetrados pelas classes dirigentes e a tendência geral a duvidar de uma razão que não cessa de ser mal usada, creio poder ler essa peça da seguinte maneira: é um tempo de guerra. (Bertolt Brecht, Pequeno Órganon)

1O século XX, denominado o Século de Sartre, pode também ser identificado como um tempo de guerra. No que se refere à arte, embora, em momentos históricos anteriores, o teatro tenha se colocado a serviço da luta política, o período contemporâneo, talvez, tenha sido aquele que mais intensamente vivenciou os embates entre Arte e Política.

* 1 Por meio de concepções realistas e de uma estrutura narrativa centrada no conflito (e não em situaç (...)

2No Brasil, o palco vocacionado para a política sempre esteve muito próximo das experiências artísticas da Rússia e da Alemanha, do início do século XX, que foram fundamentais para a constituição de um repertório politicamente comprometido com as lutas de seu tempo[1]. Entretanto, se as conquistas formais de Erwin Piscator alimentaram inúmeros trabalhos do CPC da UNE, se as reflexões teóricas e as criações estéticas de Bertolt Brecht tornaram-se imprescindíveis para todos os que postulavam um teatro crítico, qual seria o lugar de Jean-Paul Sartre no período que o Teatro Engajado dominou a cena e os debates?
Sartre no teatro brasileiro no período anterior a 1964

3Deve-se destacar, inicialmente, que Sartre marcou sua presença na cena teatral brasileira tanto como dramaturgo, quanto como intelectual, sendo que o impacto de sua figura, como filósofo e militante, redimensionou o olhar atribuído ao homem de teatro.

* 2 É necessário fazer essa ressalva porque, em termos de texto dramático, a discussão apresenta outro (...)

4A fim de que esse movimento seja apreendido, deve-se recordar: na história do nosso teatro há a idéia recorrente de que a década de 1940 é o momento da modernidade da cena teatral[2]. E foi à luz dessa perspectiva, como bem observou Décio de Almeida Prado, que Jean-Paul Sartre foi encenado.

* 3 Prado, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 50. (...)

Ao representar peças estrangeiras entrávamos na posse de um patrimônio a que também tínhamos direito – e nem foi outro o processo pela qual manifestações literárias de tão fortes raízes nacionais como o romantismo e o modernismo se aclimataram em solo brasileiro. Diante de nossa inocência teatral, encenar um García Lorca ou um Sartre, um Bernard Shaw ou um O’Neill, significou em certo momento uma aventura tão revolucionária quanto, após a Semana de Arte Moderna, escrever um poema livre, à maneira de Blaise Cendrars, ou pintar um quadro de inspiração cubista.[3]

5Essa abrangência está presente nas montagens de A Prostituta Respeitosa (1948, Companhia Maria Della Costa, direção de Itália Fausta), Entre Quatro Paredes (1950, Teatro Brasileiro de Comédia, direção de Adolfo Celi) e Mortos sem Sepultura (1954, Teatro Brasileiro de Comédia, direção de Flamínio Bollini Cerri).

* 4 As duas pesquisas, em nível de mestrado e em nível de doutorado, sobre a Companhia Maria Della Cost (...)

6Em relação à peça Prostituta Respeitosa, os comentários apresentados pelos pesquisadores Warde Marx e Tânia Brandão[4] remetem à idéia de que o espetáculo acentuou o tema do racismo, embora o texto abarcasse, por parte do dramaturgo, intenções de poder que iam além do tema explicitado.

7Já os indícios de recepção dos espetáculos do TBC apontaram aspectos mais gerais da dramaturgia contemporânea e restrições estabelecidas por alguns segmentos sociais:

* 5 Guzik, Alberto; Pereira, Maria Lúcia. (Orgs.). Dionysos – Especial: Teatro Brasileiro de Comédia. R (...)

Estréia de ENTRE QUATRO PAREDES, de Sartre, juntamente com UM PEDIDO DE CASAMENTO, de Tchecov, num mesmo programa. Imediatamente colocam-se contra a primeira peça duas entidades antagônicas, que se unem no combate ao novo espetáculo do TBC: o Partido Comunista, a quem não convém o existencialismo sartriano, e a Cúria. Esta última chega mesmo a proibir os católicos de assistirem a ele. A Censura se levanta, e só o libera após várias representações especiais para as autoridades. Também os atores, para que o espetáculo seja liberado, têm que obter a autorização expressa de seus padres confessores. Porém o sucesso coroa tantos esforços (Crítica de ENTRE QUATRO PAREDES, Décio de Almeida Prado, O ESTADO DE SÃO PAULO).[5]

8O crítico Miroel Silveira, sobre a montagem de Mortos sem Sepultura, destacou, por um lado, a qualidade da encenação, graças ao trabalho dos atores, mas observou que o espetáculo teve sua unidade comprometida, pois o cenário não estabeleceu nem o espaço dos torturados, nem o das vítimas. Por outro lado, em uma ponderação mais abrangente atentou para o fato de que o ecletismo dramatúrgico do TBC, em última instância, tem demonstrado ausência de orientação artística e intelectual no repertório da Companhia. Propriamente, no que diz respeito ao texto teatral, assim manifestou-se:

Quando se fala em Sartre de “Mortos sem Sepultura” estamos diante desse binômio de forma e essência: teatro de lances, arrebatamentos e “chaves”, e espírito romântico na observação e descrição dos fatos, mesmo quando os próprios personagens dizem que só os fatos os preocupam (e o dizem com duas mil palavras).

* 6 Silveira, Miroel. A Outra Crítica. São Paulo: Ed. Símbolo, 1976, p. 109.

O romantismo enxergou em Shakespeare e nos clássicos quase que só o coup de théatre, os assassínios, as tiradas. Sartre remoçou a receita, tentando criar uma nova forma de melodrama – o melodrama filosófico. Às vezes alcança seu objetivo, como em A... Respeitosa, de outras, como em Mortos sem Sepultura só se realiza parcialmente: a substância da mensagem antifascista permanece viva; o que envelheceu foi o episódio, o diálogo, o romantismo, enfim. (Folha da Manhã – 27/​04/​1954).[6]

9Já Ruggero Jacobbi, ao se debruçar sobre o mesmo espetáculo, externou sérias ressalvas à concepção dramática de Sartre, em contraponto ao trabalho de direção de Flamínio Bollini.

* 7 Jacobbi, Ruggero. A Inteligência de Sartre. In: Vanucci, Alessandra. (Org.). Crítica da Razão Teatr (...)

Peça gélida, sem nada de imediato ou de descoberto, na qual até mesmo o grande tema psicológico (o único), focalizado no melhor momento da ação, isto é, a estranheza e o isolamento daquele que não sofreu a tortura, não consegue revelar, no fim das contas, senão esse dom belíssimo, mas pobre, que é a inteligência de Sartre. [...] Nossa opinião sobre a peça de Sartre é tão radicalmente negativa (de um radicalismo animado não pela agressividade, mas sim exatamente – e pedimos que se pense o sentido da palavra – pelo “desânimo”), que quase não temos vontade de comentar o espetáculo, isto é, o esforço tremendo do diretor e dos intérpretes.[7]

10Os comentários expostos corroboram a avaliação feita por Almeida Prado: uma perspectiva de modernização efetivada pela presença de encenadores e de uma dramaturgia estrangeira. Sob esse olhar, no que diz respeito a Jean-Paul Sartre, as suas peças não foram selecionadas por impacto político e/​ou filosófico, mas pela densidade que as mesmas poderiam produzir no palco.

11A modernidade cênica instalara-se definitivamente nos palcos brasileiros, mas os trabalhos desenvolvidos sob essa égide passaram a ser considerados limitadores e insuficientes para as exigências estéticas e históricas do período, principalmente para os profissionais que viam na atividade teatral uma possibilidade concreta de intervir no processo de conscientização da sociedade brasileira. Para compreender tal diagnóstico, não se pode esquecer que os temas do progresso e da modernização foram eixos teóricos e políticos de nossa história contemporânea, sobretudo entre os anos de 1930 e 1960. Porém, as suas concepções não se mantiveram inalteradas.

12Um exemplo disso ocorreu na década de 1950, quando as discussões do nacional vieram a público, pelo trabalho do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). A busca do homem brasileiro e da soberania do país ganhara a adesão dos setores progressistas, dentre os quais estavam jovens atores, diretores e dramaturgos, oriundos da Escola de Arte Dramática (EAD) e do Teatro Paulista do Estudante (TPE), com particular destaque para Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, também militantes do movimento estudantil e do PCB.

* 8 Para um maior detalhamento dessa discussão, consultar:

13Essa ambição intelectual e artística tornou-se responsável pela interpretação que explicou a decadência do Teatro Brasileiro de Comédia e a ascensão do Teatro de Arena de São Paulo. Este assumiu seu lugar na historiografia como o grupo cênico que renovou o palco brasileiro e redefiniu o papel do teatro na vida cultural do país com a encenação, em 1958, de Eles Não Usam Black-Tie de Gianfrancesco Guarnieri.[8] Sob esse ponto de vista:

A projeção só lhe veio quando se juntaram a José Renato três jovens homens de teatro destinados a revolucionar a dramaturgia brasileira. Augusto Boal trazia dos Estados Unidos a técnica do playwriting, no que diz respeito ao texto, e, quanto ao espetáculo, uma preocupação maior com a veracidade psicológica, conseqüência já do “método Stanislávski”, difundido por intermédio do Actors’ Studio de Nova York. Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, por seu lado, ambos filhos de artistas esquerdistas, ambos ligados desde a adolescência a movimentos estudantis, chamavam o teatro para a realidade política nacional, cuja temperatura começava a se elevar. Da interação entre esses elementos, artísticos uns, sociais outros, do jogo de influências, travado entre pessoas com pouco mais de vinte anos, na idade da maior incandescência emocional e intelectual, resultou a fisionomia definitiva do Teatro de Arena.

* 9 Prado, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 63. (...)

A grande originalidade, em relação ao TBC e tudo o que este representava, era não privilegiar o estético, não o ignorando, mas também não o dissociando do panorama social em que o teatro deve se integrar. Desta postura inicial, deste “engajamento” – palavra lançada pouco antes por Sartre – é que adviriam os traços determinantes do grupo, o esquerdismo, nacionalismo e o populismo (em algumas de suas acepções), a tal ponto entrelaçados que apenas a abstração conseguirá separá-los.[9]

14Sob esse viés, novos tempos e novas discussões ganharam os palcos. Surgiram o texto politizado e o anseio por um teatro comprometido com a realidade. Motivado pela excelente acolhida de Black-tie pelo público e pela crítica, o Arena criou os Seminários de Dramaturgia, a fim de fomentar a confecção de peças voltadas para a conscientização popular e para os problemas sociais. Mas, essa preocupação não era sua exclusivamente. No mesmo período, em Pernambuco, durante o governo de Miguel Arraes, criou-se, por iniciativa de artistas como Ariano Suassuna e Luiz Mendonça, o Movimento de Cultura Popular (MCP). No Rio de Janeiro, as perspectivas de instrumentalizar a arte deram origem ao Centro Popular de Cultura (CPC). E, ainda em São Paulo, surgiu o Teatro Oficina, fundado por estudantes do curso de Direito do Largo São Francisco.

15Em verdade, o país experimentava a expectativa da transformação, traduzida na defesa de práticas antiimperialistas e no sonho de concretizar a revolução democrático-burguesa, vislumbrado por diversos segmentos sociais. Enquanto isso, o mundo assistia estupefato ao êxito da Revolução Cubana, em 1959.

16Desse processo, surgiu nos palcos brasileiros, pela primeira vez, a vinculação explícita entre Arte e Política e a intenção de engajamento em favor das causas populares visando à superação histórica. Tal iniciativa fez emergir um teatro intelectual, por meio do qual se intensificaram as críticas a uma concepção burguesa do fazer teatral, ao lado da defesa de uma cena que ampliasse o seu alcance para além dos limites das salas de teatro, como foi rememorado por Augusto Boal, na seguinte passagem:

A isto chamo Síndrome Che, que tantos de nós, um dia padecemos. Querer libertar escravos à força: tenho a minha verdade, sei o que é melhor para eles, então, já, façamos o que quero que façam. Sei que é certo. Vejo o que não podem ver: venham comigo, quero abrir seus olhos. Têm que ver o que vejo, pois vejo o caminho certo! As intenções, as melhores. A prática, autoritária: vinha de cima.

[...] Quando nossa insatisfação cresceu demais, cresceu a Síndrome Che Guevara. Grupos teatrais, em todo país, abandonaram suas platéias profissionais em busca do novo público, vasculhando o mundo à procura de oprimidos para lhes oferecer a Palavra Justa! [...] Mundo afora, bem-intencionados elencos sofriam, em doses mais cavalares do que a nossa, da mesma Síndrome. Faziam, em grotesca farsa, o que o Che havia feito em trágica vida!

* 10 Boal, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 1 (...)

Muitos, antes de nós, que praticavam o assim chamado teatro político mensageiro, na verdade praticavam uma forma de teatro evangélico: evangelizavam, com doutrinas discutíveis, a palavra soberana de uma organização ou de um Partido. A grande maioria dos CPCs, a par de suas imensas virtudes, jamais assaz louvadas, padecia dessa doença.[10]

17O relato acima evidencia, com clareza, a intenção desses artistas em dar vida a um teatro intelectual ou, nos termos de Boal, a constituição de um teatro político mensageiro, que chamou para a si a tarefa da consciência social e da transformação histórica. Nesse sentido, observa-se, nesse procedimento, a definição, dada por Jean-Paul Sartre, do que vem a ser o intelectual:

Assim, originalmente, o conjunto dos intelectuais aparece como uma variedade de homens que, tendo adquirido alguma notoriedade por trabalhos que dependem da inteligência (ciência exata, ciência aplicada, medicina, literatura, etc.), abusam dessa notoriedade para sair de seu domínio e criticar a sociedade e os poderes estabelecidos em nome de uma concepção global e dogmática (vaga ou precisa, moralista ou marxista) do homem.

* 11 Sartre, Jean-Paul. O que é um intelectual? In: ______. Em Defesa dos Intelectuais. São Paulo: Ática (...)

E, caso se queira um exemplo dessa concepção comum do intelectual, direi que não chamamos de “intelectuais” os cientistas que trabalham na fissão do átomo para aperfeiçoar os engenhos da guerra atômica: são cientistas, eis tudo. Mas, se esses mesmos cientistas, assustados com a potência destrutiva das máquinas que permitem construir, reunirem-se e assinarem um manifesto para advertir a opinião pública contra o uso da bomba atômica, transformam-se em intelectuais.[11]

18Em termos históricos, tal afirmação tem procedência, na medida em que vários artistas, de diferentes regiões e grupos de trabalho, declararam o impacto que os escritos do pensador francês tiveram em suas formações. O diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, por exemplo, afirmou:

Eu já lia Sartre e já conseguia localizar nos textos dele certos pontos de identificação com a gente. Por exemplo, a minha geração sentia que tinha que se virar por ela mesma. Aí entrava a noção sartriana de “liberdade”, de que não tem desculpa, de que você tem que se atirar nas coisas mesmo. Não tem pai, não tem mãe, não tem ditadura que lhe justifique, não tem opressão, não tem nada! Ou você age ou você se fode. Você tem que se virar? Se vire!

* 12 Corrêa, José Celso Martinez. Romper com a Família, Quebrar os Clichês. In: Staal, Ana Helena Camarg (...)

[...] Com o Sartre eu fui descobrindo o que a minha geração descobriu principalmente com Cuba: a idéia de que não tem “jeito”, a gente tem é que se virar. Se você não acontece, não acontece nada. “O dever do revolucionário é fazer a revolução”: essa frase, essa noção da filosofia sartriana não batia como slogan, não! Ela te entregava à vida.[12]

19Por sua vez, Luiz Carlos Maciel revelou:

* 13 Maciel, Luiz Carlos. Geração em Transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova Fro (...)

A atração pela rebeldia certamente não foi só minha mas de toda a geração porque era sentida por cada um de nós. A negação romântica parecia-nos o valor mais criado na história da cultura ocidental. Minha trajetória intelectual, por exemplo, atravessa vários fascínios. [...] O primeiro entretanto foi o existencialismo. Lembro que um dos primeiros livros adultos que li, ainda adolescente, foi O sentimento trágico da vida, de Miguel de Unamuno. [...] Essa experiência poderosa e angustiante me levou para o existencialismo. Li Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger, Sören Kierkegard etc. quando ainda era praticamente um fedelho. O reconhecimento de que o homem é absurdo, uma paixão inútil, foi fundamental na minha formação e, estou certo, na de meus companheiros de geração. Mas se Camus diz que o único problema filosófico realmente sério é o suicídio, não estávamos dispostos a morrer tão jovens. Queríamos viver. E, para isso, era preciso encontrar um valor na vida, um sentido. E foi assim que a necessidade de organizar o mundo se apresentou, como resposta diante de nossa perplexidade em face do absurdo metafísico. Sartre foi o pensador que melhor nos conduziu nesse caminho áspero. Minha geração foi, então, marcada pela política. Achávamos que tínhamos a missão sagrada de libertar nosso país da dominação, nosso povo da exploração, nossas vidas da neurose e nosso planeta da catástrofe. E o meio adequado para atingir tais objetivos era a política. Pelo menos foi isso que Sartre nos ensinou.[13]

20Os depoimentos de Zé Celso e Luiz Carlos Maciel são ilustrativos do repertório político e cultural que alimentou jovens intelectuais e artistas, nos idos dos 1950 e 1960. O impacto das idéias existencialistas de Sartre os mobilizava para refletirem acerca de suas próprias condições como indivíduos e, posteriormente, em uma extensão maior, como seres sociais. A isso, acrescente-se o neo-realismo italiano, a nouvelle vague, o cinema de Eisenstein, a descoberta de Marx, Brecht e Antonio Gramsci. Apesar de todos esses referenciais, foi o intelectual engajado, Jean-Paul Sartre, admirador de Fidel Castro e defensor do fim da opressão, postura materializada no apoio à Revolução Cubana e à Independência da Argélia, que se tornou o amálgama da atuação do teatro engajado no Brasil: uma prática artística que buscou romper com os limites estabelecidos e assumir a causa da transformação social.

* 14 Acerca desse aspecto limitador na análise estética de Sartre, Contatori Romano assim se manifestou: (...)

21Desse ponto de vista, a postura pública de Sartre estimulou as ações políticas advindas das atividades teatrais. Entretanto, o mesmo lugar não lhe pode ser atribuído quando o debate se volta para as linguagens utilizadas por esses artistas, porque as investigações no campo estético não estiveram entre as preocupações mais prementes do filósofo francês[14], ao passo que aqueles que protagonizavam o teatro engajado no país eram instigados por premissas que foram sintetizadas por Boal, na seguinte passagem:

* 15 Boal, Augusto. Explicação. In: ______. Revolução na América do Sul. São Paulo: Massao Ohno Editora, (...)

Há tempos, um crítico afirmou que não se deve meter política em teatro. Essa resistência ao tema proibido jamais teve razão. Teatro não é forma pura, portanto, é necessário meter alguma coisa em teatro, quer seja política ou simples história de amor, psicologia ou indagação metafísica. E se política é tão bom material como qualquer outro, surge o novo e mais sério problema: a idéia da peça. Atualmente existe forte tendência para que uma obra seja julgada levando-se demasiado em conta as idéias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se este no único padrão de excelência ou inferioridade. Procede-se ao julgamento ético, abandonando-se o estético. Basta que o autor manifeste solidariedade e simpatia aos negros, aos operários ou à mulher sacrificada para que a sua obra seja encarada com seriedade. [...] Exemplificando: “O Mártir do Calvário” não pode ser analisado, nem pelos mais carolas, em função da vida exemplar de Jesus. Neste momento, a tendência de nossa dramaturgia não é nada religiosa, mas permanece o mesmo problema visto agora de novo ângulo.[15]

22Essa advertência expõe uma preocupação com os estímulos criativos de uma arte comprometida politicamente, com o intuito de advertir que a produção estética não pode prescindir do que lhe é específico: encontrar a linguagem formal adequada para materializar o conteúdo. Nesse caso, a questão ética, por si só, não deve ser o único critério considerado na análise crítica.

23Tal evidência é mais um argumento que alicerça a análise ora apresentada, isto é, se do ponto de vista da linguagem não é possível construir níveis de aproximação entre Sartre e o teatro político, já no que se refere à concepção de engajamento houve uma convergência de interesses.

* 16 Ibidem, p. 8.

Falta agora tentar uma ligação entre forma e conteúdo. Sartre, analisando Brecht, afirmou que pretende, como este, criticar a sociedade na qual vive o homem moderno, expondo os processos pelos quais essa sociedade e esse homem se desenvolvem. Mas quer também fazer o espectador participar integralmente da experiência do homem deste século, porque é ele, o espectador, que o vive. Este me parece ser o grande caminho do teatro moderno. Pouco importa se vou para ele ou não: importa que gostaria de penetrá-lo.[16]

24Apesar de Sartre não ter, como dramaturgo, direcionado o debate estético, as suas peças voltaram aos palcos graças ao grupo Oficina. Em 1959, em uma co-produção com a Aliança Francesa, com a direção de Jean Luc Descaves, foi encenada As Moscas e, em 1960, A engrenagem, com direção de Augusto Boal. Com esse último, qualificado por Zé Celso como o primeiro trabalho político do grupo, estabeleceu-se um debate acerca do tema do imperialismo à luz do processo eleitoral brasileiro de então.

* 17 Corrêa, José Celso Martinez. Romper com a Família, Quebrar os Clichês. In: Staal, Ana Helena Camarg (...)

Nesse momento o país estava em eleições: era a época do Jânio Quadros e do Lott. Então, durante a representação a gente perguntava a sério para o público: “O que vocês vão fazer dessa engrenagem, o que vocês vão fazer do imperialismo?”. Inclusive, nós utilizamos o teatro para uma exposição sobre esse tema, sobre a Petrobrás, aquelas coisas da época. Cada noite tinha um debate e nós perguntávamos de que lado os caras estavam. Foi aí que tivemos a nossa primeira experiência com a censura. Íamos representar A Engrenagem no Museu do Ipiranga, em São Paulo, e a representação foi proibida com a desculpa de que as crianças não poderiam assistir ao espetáculo. Nós nos amordaçamos com umas tiras de pano branco e fizemos uma passeata até o Sindicato dos Metalúrgicos para mostrar a peça lá.[17]

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